sábado, 27 de março de 2010

A "racionalidade" capitalista

1 - O capitalismo foi o primeiro sistema social a afirmar uma fundamentação racional para a sua existência. Até aí, a legitimação dos outros tipos de instituição da sociedade era mítica, religiosa ou tradicional. A especificidade do capitalismo resulta do facto de se apresentar como regime "racional", cujo surgimento assinala o triunfo da razão na história. Sinal disso é a "mão invisível" de Adam Smith, que se apresenta como uma espécie de encarnação económica da harmonia pré-estabelecida leibniziana, assegurando que seja qual for a actividade praticada pelos indivíduos na prossecução dos seus interesses particulares, aquela concorrerá necessariamente para o bem comum, ou seja, para o melhor dos mundos possíveis.
Na conto de fadas capitalista da história da humanidade ,a "astúcia da razão" trabalha sob a forma de leis do mercado garantindo o equilíbrio racional do sistema. As acções humanas são assim guiadas por essas entidades transcendentes e transhistóricas que nos fazem avançar na direcção do progresso e do bem comum.
Não deixa de ser refrescante que face à crise dos mercados financeiros que abalou recentemente o mundo, se tenha ouvido um coro de lamentos acerca da ganância dos investidores e da sua falta de respeito pelo bem comum. Mas então a única motivação económica não é o lucro? Da "racionalidade" dos mercados não resulta inevitavelmente o bem comum?
É curioso que um Keynes tenha afirmado que o sistema capitalista abandonado a si próprio não é capaz de estabelecer uma situação de equilíbrio. Afirmação que é hoje repetida ad nauseam por todos os líderes políticos das grandes nações capitalistas.

2- Por outro lado, a ideia de que o capitalismo favorece a conservação dos recursos para a salvaguarda de lucros futuros esbarra quotidianamente com a realidade do empreendimento capitalista de exploração manifesta desses recursos até à sua exaustão. De modo provocatório, dir-se-ia que essa exploração se assemelha ao movimento de uma praga de gafanhotos que vai tudo destruindo à sua passagem, avançando de território em território. Não se vê qualquer preocupação com os recursos naturais e o assegurar de futuros lucros quando se tornam inabitáveis e inférteis vastos territórios através da prospecção e extracção das jazidas de petróleo. Tal como a conservação do ambiente e a garantia consequente de novos lucros não estão no topo das prioridades quando se abatem milhares de quilómetros quadrados de floresta sem qualquer preocupação com a sua reflorestação. Os exemplos, mais ou menos bombásticos, abundam e por isso não vale a pena continuar a enunciá-los.

3- A "racionalidade" capitalista não é incompatível com a jornada de 16 horas, com o trabalho infantil, com a exploração de recursos naturais e humanos, com a falta de protecções sociais, etc.
Exemplos claros disso são o capitalismo, por exemplo, da segundo metade do século XIX, e actualmente ( aquela que se já não é a maior economia capitalista do mundo o será a curto prazo) a China. Se o capitalismo nas sociedades ocidentais nos mostra nas últimas décadas, para usar uma expressão caída em desuso, um rosto humano, isso deve-se à luta constante dos operários, das populações em geral, dos movimentos de emancipação, na sua exigência e obtenção de novos direitos. O Estado social, hoje em dia tão acarinhado por aqueles que ainda recentemente o vilipendiavam, não é mais do que uma dessas criações que, lembrando novamente keynes, permitem o controlo e o equilíbrio do sistema.

3 comentários:

  1. Caro Helder,

    agradeco a contribuicao no blog e fico impressionado com o bom post.


    Mas para fazer breves comentarios ao post aqui vai:


    "Não deixa de ser refrescante que face à crise dos mercados financeiros que abalou recentemente o mundo, se tenha ouvido um coro de lamentos acerca da ganância dos investidores e da sua falta de respeito pelo bem comum. Mas então a única motivação económica não é o lucro? Da "racionalidade" dos mercados não resulta inevitavelmente o bem comum?"

    Primeiro, a racionalidade referida neste texto so funciona em termos de mercados competitivos e nao monopolios. Se nao houver competitividade, o mercado nao funciona. Mas o conceito de racionalidade, em economia, e o de accoes que promovem o auto interesse. Mais precisamente, as escolhas tem de ser, no minimo, transitivas e completas.
    Segundo, nao se afirma em economia que existe algum tipo de altruismo por parte dos individuos. Pelo contrario, os individuos sao egoistas. O que acontece e que esse egoismo leva ao bem estar geral porque todos querem o melhor para si. Exemplo: empresas x, y, z que vendem bens alimentares, eles vao competir para oferecer o produto de melhor qualidade e preco de forma a que os consumidores fiquem satisfeitos.

    Terceiro, a causa da crise financeira nao foi o mercado livre, mas o excesso de regulacao que nao permitiu o sistema financeiro funcionar. Alias, entre economistas (serios) todos admitem que isto e verdade, que se o estado mete a mao, o mercado deixa de funcionar.

    Quarto, nao e verdade que tenha de resultar no bem comum, mas normalmente e assim.


    "Por outro lado, a ideia de que o capitalismo favorece a conservação dos recursos para a salvaguarda de lucros futuros esbarra quotidianamente com a realidade do empreendimento capitalista de exploração manifesta desses recursos até à sua exaustão"

    De novo, o problema trata-se de uma ma distribuicao de direitos de propriedade e de falta de competitividade dos mercados.Alem disso, lamento dizer que a afirmacao acima carece de dados empiricos que a comprovem. Alem disso, o proprio exemplo dado do petroleo mostra exactamente que existe preocupacao com a venda do produto, e por isso que o petroleo e tao alto. Como diz o Nobel da Economia Stigliztz, os precos sao a forma dos consumidores e os vendedores comunicarem. Isto e, vou por o preco mais caro para tu nao poderes comprar ou comprares menos.



    "A "racionalidade" capitalista não é incompatível com a jornada de 16 horas, com o trabalho infantil, com a exploração de recursos naturais e humanos, com a falta de protecções sociais, etc."

    De facto nao e. Mas nao conheco nenhum economista que o diga. O argumento que normalmente se usa neste caso (libertario) e que e um preconceito pensar que a criancas nao podem trabalhar e devem estudar (o que eu nao concordo).



    Abraco

    Luis

    ResponderEliminar
  2. ""A "racionalidade" capitalista não é incompatível com a jornada de 16 horas, com o trabalho infantil, com a exploração de recursos naturais e humanos, com a falta de protecções sociais, etc.""
    Em rigor, nao e incompativel com nenhum sistema economico, isto depende dos valores morais/eticos de cada sociedade.

    ResponderEliminar
  3. "O argumento que normalmente se usa neste caso (libertario) e que e um preconceito pensar que a criancas nao podem trabalhar e devem estudar (o que eu nao concordo)."

    Em rigor, e de facto um preconceito pensar que as criancas nao possam trabalhar mas as pessoas, em geral, nao querem isso para os seus filhos e tentam transpor essa crenca para o campo moral. Mas e pouco provavel que uma sociedade livre, ou mais anarquica, aceitasse o trabalho infantil dado que a vasta maioria das pessoas se lhe opoe.

    ResponderEliminar