Pensar a cidadania, hoje.1
A questão da cidadania surge-nos desde a Grécia Antiga, onde apenas os homens livres teriam acesso, sendo, por isso, considerados como cidadãos de plenos direitos, podendo exercer cargos políticos. Todavia, esta definição, tal como se apresentava, excluía elementos importantes da vida quotidiana. Tais elementos eram parte integrante e indispensável para o bom funcionamento da sociedade, a saber: as mulheres, os estrangeiros e os escravos.
Com o decorrer dos tempos a escravatura desaparecera, e só mais tarde a mulher viria a ser considerada como cidadã, ainda que, por vezes, com algumas reservas. Contudo, há ainda um elemento não menos importante na vida das comunidades, os estrangeiros.
Tendo em conta estes aspectos, afigura-se-me pertinente, pensar a cidadania no contexto actual. Para iniciar esta linha de pensamento, poderia colocar várias questões, desde: o que é, de facto, a cidadania? Que critérios empregamos para atribuir a cidadania? Quem é o cidadão pós-moderno e o que o distingue do cidadão tradicional?
Como lida o Estado com este novo cidadão que assume a hibridez da sua identidade, que reivindica o seu direito à diferença e às suas múltiplas lealdades, das quais a lealdade ao Estado é apenas mais uma?2
2 Idem, ibidem, p. 9.
3 Idem, ibidem, p. 12.
Como lida o Estado com este novo cidadão que assume a hibridez da sua identidade, que reivindica o seu direito à diferença e às suas múltiplas lealdades, das quais a lealdade ao Estado é apenas mais uma?2
Poderíamos considerar a cidadania enquanto forma de concretização da ideia de comunidade bem estruturada levada à perfectibilidade, com capacidade de gerir a vontade colectiva. Daqui surge uma nova configuração e compreensão da vida pública que, tendo como base o Estado, não menospreza a vida privada.
Porém, o Estado, mesmo aquele que se proclama liberal, tem vindo a evidenciar-se na vida do cidadão. Deste modo, o indivíduo não conseguirá usufruir plenamente da sua cidadania. Assim, parece ser inevitável uma transformação da cultura política para que, desta forma, seja possível responder a questões tão prementes como a integração social, a solidariedade e a contenção do Estado. É por meio desta mudança que o cidadão se reencontra com a esfera pública, podendo, então, participar activamente enquanto legislador e detentor de direitos.
A identidade da cidadania decorre da relação entre cidadania e nacionalidade na era moderna. Tal relação surge enquanto espaço legal de direitos, dependente do Estado-nação para a concretização dos mesmos (incluindo os direitos humanos).
Na era moderna, a humanidade revela-se através da acção legal, garantida pelo Estado-nação. Contudo, e como se pôde ver ao longo da História, sempre existiram apátridas, perseguidos, refugiados. Indivíduos que não foram acolhidos por Estado algum, vendo assim negado o acesso aos seus direitos: negação da humanidade fora dos limites do Estado.3
De facto, é o Estado, enquanto soberano, que domina a cidadania, a paz ou a guerra. Mas, será possível pensar uma cidadania fora do domínio de qualquer Estado, onde haja respeito, protecção e efectivação dos direitos humanos? Podemos pensar propostas para uma ética à escala planetária, onde se faça um apelo à aceitação do outro, superando as diferenças culturais; garantindo a protecção jurídica dos direitos humanos.
Todavia, as propostas para uma solidariedade de acção global têm vindo a ser subvertidas. Veja-se, por exemplo, nos casos de intervenção humanitária, a qual depende dos Estados que a acolhem e que são confrontados com imposições externas. A intervenção militar humanitária segue alguns critérios, como por exemplo a justificação (onde a acção militar se torna justificável no âmbito de emergências humanitárias extremas); autorização (imprescindível para que a intervenção possa acontecer; deliberada num quadro global, impedindo que Estados intervenham por conta própria); conduta (toda a intervenção deve seguir um comportamento rigoroso, de modo a evitar mais danos para com os inocentes e forças adversárias).
Outra questão não menos importante é o paradigma nacional de cidadania que tem vindo a encontrar desafios, como é o caso da grande pluralidade cultural étnica e até nacional que tem vindo a modificar as características mais proeminentes de determinadas sociedades.
Da cidadania surgem, frequentemente, as ideias de inclusão e exclusão dos indivíduos, principalmente nos Estados-nação. A ideia de exclusão está, claramente, relacionada com o espaço do estrangeiro, o imigrante.
Hoje em dia, tomamos como certo que a maioria da população mundial é definida como cidadã de algum Estado. Esta suposta igualdade formal já não é mais do que uma ilusão, dado que existe uma hierarquia de Estados-nação no que concerne a aspectos fulcrais como o controlo de armamento, o direito internacional e o comércio internacional.
Pensar a cidadania na modernidade implica a inclusão de dois conceitos basilares: a nacionalidade e a imigração.
A nacionalidade faz ressurgir a ideia da nação como comunidade por excelência, a qual estabelece os critérios de admissão à cidadania na modernidade, isto é, os critérios de inclusão.
Por sua vez, a imigração denuncia a existência de uma comunidade diferente, onde cabe ao Estado, enquanto detentor jurídico e cultural dos critérios fundamentais da cidadania, o critério último de exclusão da cidadania.
Há, na época moderna, outras questões que assolam os Estados, nomeadamente o fenómeno de globalização, que traz consigo a crescente diversidade entre culturas (pluralidade humana) e por conseguinte, um grande envolvimento com o capitalismo global. Veja-se por exemplo o caso português: a crescente pluralidade humana e os contributos das mudanças jurídicas e políticas nos últimos dez anos favoreceram largamente a criação de políticas de imigração e integração. O crescente número de imigrantes leva-nos a questionar a integração política de não-nacionais. Não se trata apenas de possibilitar o acesso aos direitos sociais, mas também o acesso à vida política a todos os residentes.
Relativamente à cidadania europeia, podemos questionar-nos se esta não será, de certa forma, mais uma medida de exclusão e elitista para aqueles que já são nacionalmente excluídos.
E os cidadão europeus? Sentir-se-ão, de facto, pertencentes à comunidade europeia? A impressão que parece persistir é a de que tudo isso se encontra longe da vida quotidiana, onde a Comissão Europeia é um espaço dominado por políticos nacionais mais velhos.
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1 O artigo em estudo encontra-se presente no livro: Cidadania no Pensamento Político Contemporâneo, Coordenadora: Isabel Estrada Carvalhais, Editora Principia, 2007, ISBN 9789898131034.
2 Idem, ibidem, p. 9.
3 Idem, ibidem, p. 12.
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