terça-feira, 30 de março de 2010

Deve a mutilação genital feminina ser proibida?

É tradição, em alguns grupos muçulmanos, mutilar os genitais femininos. Países Ocidentais têm sido confrontados com situações deste género e não sabem como hão-de reagir. Isto porque há três questões em jogo. Primeiro, trata-se de uma medida etnocêntrica proibir esta prática? Segundo, caso seja etnocêntrica, pode ainda haver outro argumento para proibir a prática? Terceiro, se não houver outro argumento para proibir totalmente a prática, pode então, proibir-se parcialmente?
Proibir a mutilação do clítoris é, de facto, uma medida etnocêntrica. Para compreender isto basta aludir a dois exemplos de práticas semelhantes que são aceites nas sociedades contemporâneas: cirurgia estética vaginal e piercing no clítoris. A primeira é aceite por razões estéticas, nomeadamente algumas mulheres desenvolvem uma ansiedade extrema devido ao seu aspecto; a segunda é igualmente por razões estéticas mas não como resultado de ansiedade mas apenas por gosto. Sendo estas as razões, parecem até bastante pobres se comparadas com as razões dadas para a tradição muçulmana (razões espirituais e religiosas). Normalmente, razões desta espécie são muito mais respeitadas do que meras razões estéticas.
Pode dizer-se que a diferença é que os casos ocidentais são voluntários e o muçulmano involuntário. Existe alguma verdade neste ponto, mas há dois comentários a fazer. O facto de um ser voluntário e o outro involuntário não tem implicações no problema em debate: se por princípio se deve proibir a mutilação genital feminina. O que é relevante neste debate é se se pode por princípio proibir esta prática. Outro comentário a fazer é que surpreendentemente há bastantes mulheres muçulmanas que escolhem fazê-lo voluntariamente (Ver Phillips, Multiculturalism without Culture). Ou seja, a prática, mesmo que pareça intolerante aos olhos de muitos não é razão suficiente para que se intervenha.
Apesar de ser um argumento etnocêntrico, pode afirmar-se ainda que é o papel do Estado proteger os indivíduos de situações que possam ser prejudiciais. No entanto, a meu ver o paternalismo do Estado revelou-se historicamente perigoso e, parece-me, é sociologicamente incorrecto. É historicamente perigoso porque temos bastantes razões para duvidar da intervenção estatal – abusos, ditaduras e totalitarismos são resultados de excesso de intervenção. Em termos sociológicos, considerar que os indivíduos não são capazes de se responsabilizar pelos seus actos e tomar decisões é reduzir os indivíduos à cultura que eles têm sem dar espaço para qualquer liberdade. Esta posição que nasceu com a antropologia é, hoje, altamente criticada e pouco aceite na literatura académica.
O que é curioso é que esta mesma posição que concede às mulheres adultas liberdade para decidirem, protege também as crianças deste tipo de práticas. Se considerarmos que as crianças não podem fazer escolhas pelo menos ao mesmo nível de abstracção e racionalidade dos adultos, então o argumento da liberdade não se aplica a elas; de facto, existem boas razões para que se proíba este tipo de práticas até à idade adulta, de forma a dar liberdade de escolha às crianças.
Queria só salientar que esta perspectiva não é relativista. Pelo contrário, eu baseio-me em factos e argumentos objectivos acerca das capacidades humanas e do papel do Estado. Um relativista provavelmente concordaria comigo em alguns dos pontos que afirmei, mas por razões diferentes e, a meu ver, erradas.

A Mente e a Moral

No princípio do século XX, o famoso filósofo inglês G.E. Moore, criticou no seu livro Principia Ethica o naturalismo ético. Isto porque a bondade, que para Moore era o valor ético fundamental, não podia ser definida em termos naturais. Ou seja, que a bondade era indefinível e não analisável e portanto a ética seria autónoma, irredutível às ciências naturais ou até mesmo à metafísica. Esta era a celebre falácia naturalista de Moore, cometida pelo naturalismo ético ao querer definir a bondade.
Muitos filósofos foram influenciados pelo pensamento de Moore de que a ética como campo filosófico estava quase totalmente separado da psicologia e da sociologia.

Contudo hoje em dia vários filósofos da moral pensam que é necessário prestar atenção aos recentes trabalhos da psicologia, em especial os da psicologia cognitiva. Alguns desses filósofos como John Deigh, Andy Clark ou Paul Churchland, tentam mostrar como o trabalho actual das ciências cognitivas não só contribui, como também se cruza com a reflexão filosófica da moral.
Piaget e Kohlberg fizeram uma reflexão muito interessante na psicologia moral, mas as suas contribuições foram em grande parte à margem das correntes principais da psicologia, como também é verdade para grande parte da psicologia social que tem tocado em questões morais.

Ultimamente tem havido um grande aumento do interesse na racionalidade moral por parte das ciências cognitivas e das psicologias do desenvolvimento.
A racionalidade moral é uma das mais difíceis e complexas formas de racionalidade, e qualquer teoria que seja forte sobre a racionalidade terá inevitavelmente que se confrontar com ela. Pois uma coisa é mostrar como a mente consegue fazer cálculos matemáticos, outra coisa é mostrar como consegue a mente formar juízos num dilema moral. A tentativa de tornar as ciências cognitivas relevantes, para a actual racionalidade humana, tem despoletado o interesse das ciências cognitivas na filosofia moral. Continuará certamente este interesse a prolongar-se nos tempos futuros e trazer-nos-á, desejo eu, abundantes frutos.

Ricardo Barroso

sábado, 27 de março de 2010

A "racionalidade" capitalista

1 - O capitalismo foi o primeiro sistema social a afirmar uma fundamentação racional para a sua existência. Até aí, a legitimação dos outros tipos de instituição da sociedade era mítica, religiosa ou tradicional. A especificidade do capitalismo resulta do facto de se apresentar como regime "racional", cujo surgimento assinala o triunfo da razão na história. Sinal disso é a "mão invisível" de Adam Smith, que se apresenta como uma espécie de encarnação económica da harmonia pré-estabelecida leibniziana, assegurando que seja qual for a actividade praticada pelos indivíduos na prossecução dos seus interesses particulares, aquela concorrerá necessariamente para o bem comum, ou seja, para o melhor dos mundos possíveis.
Na conto de fadas capitalista da história da humanidade ,a "astúcia da razão" trabalha sob a forma de leis do mercado garantindo o equilíbrio racional do sistema. As acções humanas são assim guiadas por essas entidades transcendentes e transhistóricas que nos fazem avançar na direcção do progresso e do bem comum.
Não deixa de ser refrescante que face à crise dos mercados financeiros que abalou recentemente o mundo, se tenha ouvido um coro de lamentos acerca da ganância dos investidores e da sua falta de respeito pelo bem comum. Mas então a única motivação económica não é o lucro? Da "racionalidade" dos mercados não resulta inevitavelmente o bem comum?
É curioso que um Keynes tenha afirmado que o sistema capitalista abandonado a si próprio não é capaz de estabelecer uma situação de equilíbrio. Afirmação que é hoje repetida ad nauseam por todos os líderes políticos das grandes nações capitalistas.

2- Por outro lado, a ideia de que o capitalismo favorece a conservação dos recursos para a salvaguarda de lucros futuros esbarra quotidianamente com a realidade do empreendimento capitalista de exploração manifesta desses recursos até à sua exaustão. De modo provocatório, dir-se-ia que essa exploração se assemelha ao movimento de uma praga de gafanhotos que vai tudo destruindo à sua passagem, avançando de território em território. Não se vê qualquer preocupação com os recursos naturais e o assegurar de futuros lucros quando se tornam inabitáveis e inférteis vastos territórios através da prospecção e extracção das jazidas de petróleo. Tal como a conservação do ambiente e a garantia consequente de novos lucros não estão no topo das prioridades quando se abatem milhares de quilómetros quadrados de floresta sem qualquer preocupação com a sua reflorestação. Os exemplos, mais ou menos bombásticos, abundam e por isso não vale a pena continuar a enunciá-los.

3- A "racionalidade" capitalista não é incompatível com a jornada de 16 horas, com o trabalho infantil, com a exploração de recursos naturais e humanos, com a falta de protecções sociais, etc.
Exemplos claros disso são o capitalismo, por exemplo, da segundo metade do século XIX, e actualmente ( aquela que se já não é a maior economia capitalista do mundo o será a curto prazo) a China. Se o capitalismo nas sociedades ocidentais nos mostra nas últimas décadas, para usar uma expressão caída em desuso, um rosto humano, isso deve-se à luta constante dos operários, das populações em geral, dos movimentos de emancipação, na sua exigência e obtenção de novos direitos. O Estado social, hoje em dia tão acarinhado por aqueles que ainda recentemente o vilipendiavam, não é mais do que uma dessas criações que, lembrando novamente keynes, permitem o controlo e o equilíbrio do sistema.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Ética e Política.

Ética e Política são duas noções que não devemos confundir nem separar. Estes conceitos têm uma relação de complementaridade entre si. Se por um lado a ética carece de uma estratégia, isto é, uma política, por outro lado, a própria política precisa de regras, meios e finalidades, sem que por isso ela se torne redutível face à ética. Torna-se necessária uma relação de complementaridade dialógica entre ética e política. Esta mesma relação pode trazer consigo dificuldades, incertezas e contradições a ser superadas.
Quando o predomínio da política face à ética é superior, verifica-se uma maior necessidade de aplicação dos imperativos éticos, como por exemplo os direitos e as liberdades individuais.
No que se refere ao princípio Liberdade, Igualdade e Fraternidade, podemos salientar que eles são contrários entre si, mas simultaneamente complementares. Isto é, se encararmos somente a liberdade, esta poderá aniquilar a igualdade e devassar aquilo que, até então, entendemos como a fraternidade. Contudo, a própria igualdade, quando forçada, não dá azo à liberdade individual. Somente a fraternidade pode colaborar com a igualdade e com a liberdade.

Um aspecto que caracteriza os nossos dias é a perda de futuro, incertezas, regressões, progressões e transformações. Tudo isto se deve a um princípio de imprevisibilidade dos resultados da acção.

            É possível constatar um profundo antagonismo entre aquilo que se entende por realismo das relações entre Estados e os próprios direitos do homem. Assiste-se, frequentemente, a uma conduta desviante do Estado e consequente menosprezo dos direitos do homem em função de interesses de poder nas relações internacionais. Quanto a este aspecto poderíamos salientar o exemplo da República Popular da China, onde os direitos do homem são constantemente subjugados em função de um desenvolvimento económico desenfreado.

A Política depara-se, constantemente, com o conflito entre realismo e utopia. Para a política realista, a utopia afigura-se-lhe como algo impossível ou de difícil acesso. Todavia não nos devemos esquecer que toda a transformação nos parece impossível à partida, enquanto não se revela na sua concretude.

As crises fazem aumentar as incertezas, tanto na acção como nas estratégias. Há uma desregulação acentuada, em tempos de crise, agudizando os desvios. Por outro lado, estes tempos conturbados são propícios às interrogações e tomada de consciência, indagando sempre por novas soluções.
Em situações de crise a ética assume um papel fundamental, devendo por isso resistir à histeria dos tempos difíceis, ressalvando a tolerância e a busca de compreensão.



terça-feira, 23 de março de 2010

Capitalismo e Ambiente II

Em primeiro lugar gostaria de saudar os meus colegas de Blog. Tenho a certeza que teremos discussões muito interessantes. Desde já, o texto do Luís Rodrigues suscitou-me uma série de interrogações, o que lhe agradeço.
Não me vou alongar, mas fala-se da teoria económica da Tragédia dos comuns (que, confesso, desconhecia). Interrogo-me se ela não falhará o alvo. É que aplica a um hipotético sistema de propriedade comum os princípios e as motivações que regem precisamente o modo de ser capitalista, ou seja, a maximização da produção e do consumo. Daí inferindo que seria inevitável uma luta pela exploração dos recursos até à sua exaustão.
Por outro lado, a afirmação de que não se trata de propriedade exclusiva de cada um dos agricultores mas de propiedade pública necessita esclarecimento. Trata-se de uma corporativa privada num sistema capitalista? De um caso de auto-gestão? De uma propriedade estatal?
Para além disso, a realidade não mostra claramente que o sistema capitalista esgota implacavelmente os recursos naturais? Não ponho em dúvida que haverá outros sistemas económicos ainda mais nocivos, mas isso não invalida a exploração insustentável a que temos vindo a assistir.
Haveria, com certeza, uma série de questões ainda mais interessantes, mas foram estas as que se me levantaram na primeira leitura do texto.

Capitalismo e Ambiente

Muitas vezes se ouve afirmar que uma das principais causas do estado do planeta é o capitalismo. Uma vez que os mercados tentam maximizar os seus lucros o que acontece é um abuso dos recursos naturais levando a que os recursos do planeta diminuam e o ambiente se degrade.
No entanto, a lógica dos mercados mostra-nos algo bastante diferente. O que de facto acontece é que se houver direitos de propriedade bem definidos a conservação do ambiente é garantida através da eficiência dos mercados. Para ilustrar este ponto de vista, os economistas normalmente aludem à Tragédia dos Comuns. Suponhamos a seguinte situação: existe um solo partilhado por vários agricultores, i.e., o solo não é propriedade exclusiva de nenhum deles, mas sim um bem público. Os agricultores não têm de pagar para usar o solo e o incentivo que têm é de gastar os recursos escassos deste solo antes que os outros agricultores o façam. Consequentemente, os agricultores em vez de tentarem conservar o ambiente o que eles fazem é gastá-lo o mais depressa possível, evitando que os outros agricultores o façam primeiro. Portanto, sendo o solo um bem público o incentivo que todos têm é gastá-lo o mais depressa possível tirando o melhor proveito do solo.
Por outro lado, se o solo fosse um bem privado os eventos seriam diferentes. Suponhamos que existe um proprietário deste terreno que pode arrendá-lo aos agricultores. O interesse do proprietário é que os agricultores não usem todos os recursos do terreno para que no futuro ele possa continuar a gerir e ter lucro. Sendo assim, o proprietário tem o incentivo de limitar o uso dos recursos, preservando o ambiente. Tendo o proprietário este incentivo terá também o incentivo de aumentar o preço do consumo do solo aos agricultores levando a que estes tenham usem o solo de forma sustentável e responsável.
Resumindo, incentivos diferentes resultam em atitudes diferentes no que diz respeito à protecção do ambiente. O que é relevante é que a associação entre lucro e ambiente resulta em desenvolvimento sustentável. Em contraste, caso o ambiente seja um bem público, o incentivo é consumir os recursos o mais depressa possível. Por isso, a solução para o ambiente não é menos mas mais capitalismo.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Lei Natural

Dou aqui uma lista dos livros e artigos que, a meu ver, são os melhores acerca de Lei Natural em Filosofia Política (dentro da tradição analítica).

Natural Law and Natural Rights, John Finnis
Natural Law and Justice, Lloyd Weinreb
Natural Law Theory: Contemporary Essays, Robert George
A Critique to the New Natural Law Theory, Russel Hittinger
How Persuasive is Natural Law Theory?, K. Greenwalt
Natural Law and Contemporary Moral Thought, Steven Smith
Natural Law: An Introduction and Re-examination, Kainz
Introduction to Jurisprudence (especialmente o terceiro capítulo), Freeman
The Blackwell guide to the philosophy of law and legal theory, Golding e Emunson
The Oxford Handbookd to Jurisprudence and philosophy of Law, Shapiro e Coleman

Liberalismo

“In a liberal society, people must be free to go to hell in their own way, provided that they stay within the law” (Barry, Culture and Equality)