Este tema foi dividido em três partes.
Na primeira, será exposta a Filosofia da Religião, no Wittgenstein do Tractatus. Num segundo post, será exposta a Filosofia da Religião, no Wittgenstein das Investigações Filosóficas. Seguir-se à na terceira parte, uma leve abordagem do impacto de Wittgenstein para a Filosofia da Religião.
Aparente paradoxo: apesar de quase nunca fazer referência (directa) ao religioso e de o remeter a um jogo de linguagem, a partir da segunda filosofia de Wittgenstein surge uma rica e variada filosofia da religião.
Diferenças entre as duas fases do pensamento wittgensteiniano
Wittgenstein I Wittgenstein II
Religioso situa-se no absoluto, no valioso Religioso constitui uma das muitas manifestações da vida humana (é relativo e parcial)
Deus não se pronuncia A palavra Deus tem sentido dentro do jogo de linguagem da religião
Mutação dos conceitos chave – da Teoria Pictórica (com factos e proposições) para os Jogos de Linguagem (formas de vida, gramática profunda, regras de uso).
1) Jogos de Linguagem (Sprachespielen) – o sentido das palavras e das proposições já não depende do facto objectivo a que se refere, mas ao contexto em que a proposição é proferida [passagem do atomismo para o holismo/ coerentismo]; o jogo de linguagem é autónomo [não há uma disciplina catedrática que avalia que regras podem ser adoptadas]; as regras são internas a cada jogo de linguagem; cada jogo de linguagem só pode ser criticado a partir de dentro [das suas próprias regras internas]; dar significado é a função das regras do jogo de linguagem; alcança-se o conhecimento das regras, não mediante um intelectualismo estrito, mas a partir da prática.
Nota: o Tratactus só analisou um jogo de linguagem possível: o da ciência.
Consequência: já se pode dizer “Deus” (não existem limites da linguagem, apenas jogos distintos que revelam diferentes (e possíveis) formas de vida).
O jogo de linguagem do religioso não se deduz a partir de outro jogo de linguagem [é autónomo]. “Deus”, ao contrário de “átomo”, não pertence à linguagem da ciência mas tem sentido dentro do contexto da linguagem própria do sagrado. Por isso, apesar de exigirmos a verificação empírica de átomo, não podemos fazer a mesma exigência em relação a Deus [situa-se num jogo com regras de uso distintas daquelas que são utilizadas na linguagem científica].
A ciência não pode avaliar a existência de Deus, nem pode julgar as crenças religiosas. Só podemos criticar uma religião se a conhecermos desde dentro, a partir das suas regras internas, cujo conhecimento se obtém pela sua prática [vivência].
2) A crítica aos jogos de linguagem
Argumento contra o uso da filosofia dos jogos de linguagem: as religiões dizem conhecer algo que é válido fora do seu jogo de linguagem, consideram que o seu credo constitui uma Verdade universal e absoluta, não limitada a usos particulares realizados em situações concretas.
Resposta: (i) a abordagem de Wittgenstein quadra bem com o fideísmo luterano (não define Deus, mas remete-se para uma vivência pessoal); (ii) através dos jogos de linguagem não se descreve a religião, apenas se dá uma nova interpretação da mesma.
Wittgenstein II não é relativista? (i) é relativista no sentido de afirmar que algo é válido no Jogo de Linguagem A e falso noutro jogo de linguagem distinto; (ii) contudo, há um critério não relativo que estabelece a não verdade em questão.
Resposta: se alguém professa um credo professa-o absolutamente, ou seja, quem o profere aplica-o inteiramente à sua vida, ao seu agir [o homem religioso expressa-se absolutamente, não por entrar em contacto com o absoluto, mas por expressar o credo absolutamente; em Wittgenstein II, o valioso aparece no sentido de valer absolutamente].
Dois problemas desta interpretação: (i) como pode uma crença ser absoluta sem ser empírica?; (ii) como se relaciona um jogo de linguagem absoluto com outros jogos relativos?
(1) Wittgenstein refere-se a atitudes (formas de vida): sujeitos com crenças diferentes não se entendem, não se faz comunicação.
(2) A religião é um jogo de linguagem que se joga absolutamente, o que significa: (i) só alguns o jogam absolutamente; (ii) ou que todos os homens podem jogá-lo absolutamente.
3) As consequências da crítica
As crenças religiosas não se fundamentam como as hipóteses empíricas; o jogo de linguagem do religioso é claramente distinto dos restantes jogos de linguagem [proximidade de Karl Barth].
Questão do não-crente: o não-crente entende o significado da palavra Deus que o crente expressa; não entende as razoes que o levam a atribuir tal significado a essa palavra e, sobretudo, não compreender como o crente chega a ordenar toda a sua vida em função daquele significado [e de outros significados do mesmo jogo de linguagem]; o que o ateu não compreende é o impacto da religião na vida do crente [o significado que provém da vida do crente] – “o modo segundo o qual usas a palavra «Deus» não nos mostra a quem te referes mas o significado que dás”, diz Wittgenstein.
Particularidade do jogo de linguagem do religioso: tem regras mais complicadas, porque trata temas relacionados com toda a Vida, e não com um aspecto da Vida [visão do mundo como um todo, e não uma situação/ um facto do mundo]; na religião expressa-se o sentido total da existência » a religião é uma atitude que cristaliza um modo de ver o mundo [uma forma de vida global e englobante]: “a vida pode educar alguém a crer em Deus. E são também experiências as que conseguem tais coisas… sofrer de várias formas. Estas não nos mostram a Deus no sentido em que nos mostram um objecto, uma impressão sensorial”. A crença do crente é anterior à razão, não provem nem se destrói por deduções lógicas (exemplo de Dummet) – a vivência religiosa é meta-racional.
Defesa e interpretação nova do argumento anselmiano: “a essência de Deus se supõe que garanta a sua existência: o que isto quer dizer realmente é que o que aqui está em questão é a existência de algo” – a existência é indiscutível (esta é a primeira e a mais firme das crenças) – a essência de Deus mostra-se na vivência do crente [a existência do religioso não se discute, porque é condição de possibilidade da vivência pessoal do crente e do seu agir].
Conclusão: como a crença religiosa é distinta de todas as outras por estar construída sobre toda a vida, não pode ser refutada como as demais: para a destruir tem de se mudar toda a vida, toda a acção, do crente; trata-se de uma crença que não se capta no pensamento, mas na acção, na Vida.
Nota: por isso, alguns neowittgensteinianos reduziram a religião à prática.
4) Crenças e não crenças na Religião – Existem crenças religiosas?
A religião é meta-racional – a conversão não é produto do intelecto: o crente não professa uma religião porque alcançou o credo religioso de forma lógico-racional [exemplo do budista]; o convertido passou a ver o mundo a partir do jogo de linguagem da religião em causa (exemplo do budismo) » não são crenças habituais: trata-se de dar um valor simbólico a experiências pessoais » [em Observaciones a “La Rama Dorada” de Frazer (1967), a religião aparece como algo não cognitivo que expressa os anseios mais profundos do ser humano: o mágico-religioso constitui uma reacção expressiva que não brota da reflexão teórica] »
os significados só são válidos, e plenamente compreensíveis, para quem se situa dentro do mesmo jogo de linguagem.
Novidade de Wittgenstein: não há propriamente crenças religiosas; a crença religiosa é elaboração posterior de certas emoções; apenas há a substituição da emoção por uma palavra, que depois nos leva a uma crença [que na realidade constitui apenas uma emoção, e não propriamente uma crença].
Equívocos a evitar: (i) pensar que a religião é crença positiva; (ii) pensar que o mágico-religioso é técnica [como a alquimia do passado, por exemplo]; (iii) o homem religioso cair na teologia.
Fenómeno que ameaça a Religião – considerar que a expressão do sentimento religioso, com uma subjectividade semelhante à da dor, se pode analisar como um facto objectivo.
Conclusão: (i) o fenómeno religioso não tem de se submeter às hipóteses e análises científicas; (ii) o mágico-religioso vale como expressão universal do sentido da vida [o que há de mais importante]; (iii) Wittgenstein apenas mudou a sua maneira de fazer filosofia, não alterou significativamente a sua concepção básica de religião.
Noção wittgensteiniana de Religião – fenómeno humano expressivo e universal; valioso; não se justifica por uma racionalidade estrita [âmbito mata-racional] » [Wittgenstein I: a religião remete-se à esfera do Silêncio; Wiitgenstein II: refere-se a um jogo de linguagem distinto do jogo de linguagem da ciência]; não se justifica, pois é condição de possibilidade de vivência a vida como um todo [uma forma de vida (Lebensform)].
Na primeira, será exposta a Filosofia da Religião, no Wittgenstein do Tractatus. Num segundo post, será exposta a Filosofia da Religião, no Wittgenstein das Investigações Filosóficas. Seguir-se à na terceira parte, uma leve abordagem do impacto de Wittgenstein para a Filosofia da Religião.
Aparente paradoxo: apesar de quase nunca fazer referência (directa) ao religioso e de o remeter a um jogo de linguagem, a partir da segunda filosofia de Wittgenstein surge uma rica e variada filosofia da religião.
Diferenças entre as duas fases do pensamento wittgensteiniano
Wittgenstein I Wittgenstein II
Religioso situa-se no absoluto, no valioso Religioso constitui uma das muitas manifestações da vida humana (é relativo e parcial)
Deus não se pronuncia A palavra Deus tem sentido dentro do jogo de linguagem da religião
Mutação dos conceitos chave – da Teoria Pictórica (com factos e proposições) para os Jogos de Linguagem (formas de vida, gramática profunda, regras de uso).
1) Jogos de Linguagem (Sprachespielen) – o sentido das palavras e das proposições já não depende do facto objectivo a que se refere, mas ao contexto em que a proposição é proferida [passagem do atomismo para o holismo/ coerentismo]; o jogo de linguagem é autónomo [não há uma disciplina catedrática que avalia que regras podem ser adoptadas]; as regras são internas a cada jogo de linguagem; cada jogo de linguagem só pode ser criticado a partir de dentro [das suas próprias regras internas]; dar significado é a função das regras do jogo de linguagem; alcança-se o conhecimento das regras, não mediante um intelectualismo estrito, mas a partir da prática.
Nota: o Tratactus só analisou um jogo de linguagem possível: o da ciência.
Consequência: já se pode dizer “Deus” (não existem limites da linguagem, apenas jogos distintos que revelam diferentes (e possíveis) formas de vida).
O jogo de linguagem do religioso não se deduz a partir de outro jogo de linguagem [é autónomo]. “Deus”, ao contrário de “átomo”, não pertence à linguagem da ciência mas tem sentido dentro do contexto da linguagem própria do sagrado. Por isso, apesar de exigirmos a verificação empírica de átomo, não podemos fazer a mesma exigência em relação a Deus [situa-se num jogo com regras de uso distintas daquelas que são utilizadas na linguagem científica].
A ciência não pode avaliar a existência de Deus, nem pode julgar as crenças religiosas. Só podemos criticar uma religião se a conhecermos desde dentro, a partir das suas regras internas, cujo conhecimento se obtém pela sua prática [vivência].
2) A crítica aos jogos de linguagem
Argumento contra o uso da filosofia dos jogos de linguagem: as religiões dizem conhecer algo que é válido fora do seu jogo de linguagem, consideram que o seu credo constitui uma Verdade universal e absoluta, não limitada a usos particulares realizados em situações concretas.
Resposta: (i) a abordagem de Wittgenstein quadra bem com o fideísmo luterano (não define Deus, mas remete-se para uma vivência pessoal); (ii) através dos jogos de linguagem não se descreve a religião, apenas se dá uma nova interpretação da mesma.
Wittgenstein II não é relativista? (i) é relativista no sentido de afirmar que algo é válido no Jogo de Linguagem A e falso noutro jogo de linguagem distinto; (ii) contudo, há um critério não relativo que estabelece a não verdade em questão.
Resposta: se alguém professa um credo professa-o absolutamente, ou seja, quem o profere aplica-o inteiramente à sua vida, ao seu agir [o homem religioso expressa-se absolutamente, não por entrar em contacto com o absoluto, mas por expressar o credo absolutamente; em Wittgenstein II, o valioso aparece no sentido de valer absolutamente].
Dois problemas desta interpretação: (i) como pode uma crença ser absoluta sem ser empírica?; (ii) como se relaciona um jogo de linguagem absoluto com outros jogos relativos?
(1) Wittgenstein refere-se a atitudes (formas de vida): sujeitos com crenças diferentes não se entendem, não se faz comunicação.
(2) A religião é um jogo de linguagem que se joga absolutamente, o que significa: (i) só alguns o jogam absolutamente; (ii) ou que todos os homens podem jogá-lo absolutamente.
3) As consequências da crítica
As crenças religiosas não se fundamentam como as hipóteses empíricas; o jogo de linguagem do religioso é claramente distinto dos restantes jogos de linguagem [proximidade de Karl Barth].
Questão do não-crente: o não-crente entende o significado da palavra Deus que o crente expressa; não entende as razoes que o levam a atribuir tal significado a essa palavra e, sobretudo, não compreender como o crente chega a ordenar toda a sua vida em função daquele significado [e de outros significados do mesmo jogo de linguagem]; o que o ateu não compreende é o impacto da religião na vida do crente [o significado que provém da vida do crente] – “o modo segundo o qual usas a palavra «Deus» não nos mostra a quem te referes mas o significado que dás”, diz Wittgenstein.
Particularidade do jogo de linguagem do religioso: tem regras mais complicadas, porque trata temas relacionados com toda a Vida, e não com um aspecto da Vida [visão do mundo como um todo, e não uma situação/ um facto do mundo]; na religião expressa-se o sentido total da existência » a religião é uma atitude que cristaliza um modo de ver o mundo [uma forma de vida global e englobante]: “a vida pode educar alguém a crer em Deus. E são também experiências as que conseguem tais coisas… sofrer de várias formas. Estas não nos mostram a Deus no sentido em que nos mostram um objecto, uma impressão sensorial”. A crença do crente é anterior à razão, não provem nem se destrói por deduções lógicas (exemplo de Dummet) – a vivência religiosa é meta-racional.
Defesa e interpretação nova do argumento anselmiano: “a essência de Deus se supõe que garanta a sua existência: o que isto quer dizer realmente é que o que aqui está em questão é a existência de algo” – a existência é indiscutível (esta é a primeira e a mais firme das crenças) – a essência de Deus mostra-se na vivência do crente [a existência do religioso não se discute, porque é condição de possibilidade da vivência pessoal do crente e do seu agir].
Conclusão: como a crença religiosa é distinta de todas as outras por estar construída sobre toda a vida, não pode ser refutada como as demais: para a destruir tem de se mudar toda a vida, toda a acção, do crente; trata-se de uma crença que não se capta no pensamento, mas na acção, na Vida.
Nota: por isso, alguns neowittgensteinianos reduziram a religião à prática.
4) Crenças e não crenças na Religião – Existem crenças religiosas?
A religião é meta-racional – a conversão não é produto do intelecto: o crente não professa uma religião porque alcançou o credo religioso de forma lógico-racional [exemplo do budista]; o convertido passou a ver o mundo a partir do jogo de linguagem da religião em causa (exemplo do budismo) » não são crenças habituais: trata-se de dar um valor simbólico a experiências pessoais » [em Observaciones a “La Rama Dorada” de Frazer (1967), a religião aparece como algo não cognitivo que expressa os anseios mais profundos do ser humano: o mágico-religioso constitui uma reacção expressiva que não brota da reflexão teórica] »
os significados só são válidos, e plenamente compreensíveis, para quem se situa dentro do mesmo jogo de linguagem.
Novidade de Wittgenstein: não há propriamente crenças religiosas; a crença religiosa é elaboração posterior de certas emoções; apenas há a substituição da emoção por uma palavra, que depois nos leva a uma crença [que na realidade constitui apenas uma emoção, e não propriamente uma crença].
Equívocos a evitar: (i) pensar que a religião é crença positiva; (ii) pensar que o mágico-religioso é técnica [como a alquimia do passado, por exemplo]; (iii) o homem religioso cair na teologia.
Fenómeno que ameaça a Religião – considerar que a expressão do sentimento religioso, com uma subjectividade semelhante à da dor, se pode analisar como um facto objectivo.
Conclusão: (i) o fenómeno religioso não tem de se submeter às hipóteses e análises científicas; (ii) o mágico-religioso vale como expressão universal do sentido da vida [o que há de mais importante]; (iii) Wittgenstein apenas mudou a sua maneira de fazer filosofia, não alterou significativamente a sua concepção básica de religião.
Noção wittgensteiniana de Religião – fenómeno humano expressivo e universal; valioso; não se justifica por uma racionalidade estrita [âmbito mata-racional] » [Wittgenstein I: a religião remete-se à esfera do Silêncio; Wiitgenstein II: refere-se a um jogo de linguagem distinto do jogo de linguagem da ciência]; não se justifica, pois é condição de possibilidade de vivência a vida como um todo [uma forma de vida (Lebensform)].
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Cf., SÁDABA, Javier - Lenguaje religioso y filosofía analítica: del sinsentido a una teoría de la sociedad. Barcelona: Fundación March, 1977.
Cf., SÁDABA, Javier - Filosofía, lógica, religión. Salamanca : Sígueme, 1978.
Cf., SÁDABA, Javier - Lo místico en Wittgenstein. In: Taula - Palma - N.º 29-30 (1998), p. 57-64.