quarta-feira, 30 de junho de 2010

A Religião na Filosofia de Wittgenstein - Parte 2: Investigações Filosóficas (1953)


Este tema foi dividido em três partes.
Na primeira, será exposta a Filosofia da Religião, no Wittgenstein do Tractatus. Num segundo post, será exposta a Filosofia da Religião, no Wittgenstein das Investigações Filosóficas. Seguir-se à na terceira parte, uma leve abordagem do impacto de Wittgenstein para a Filosofia da Religião.


Aparente paradoxo: apesar de quase nunca fazer referência (directa) ao religioso e de o remeter a um jogo de linguagem, a partir da segunda filosofia de Wittgenstein surge uma rica e variada filosofia da religião.
Diferenças entre as duas fases do pensamento wittgensteiniano

Wittgenstein I Wittgenstein II
Religioso situa-se no absoluto, no valioso Religioso constitui uma das muitas manifestações da vida humana (é relativo e parcial)
Deus não se pronuncia A palavra Deus tem sentido dentro do jogo de linguagem da religião
Mutação dos conceitos chave – da Teoria Pictórica (com factos e proposições) para os Jogos de Linguagem (formas de vida, gramática profunda, regras de uso).

1) Jogos de Linguagem (Sprachespielen) – o sentido das palavras e das proposições já não depende do facto objectivo a que se refere, mas ao contexto em que a proposição é proferida [passagem do atomismo para o holismo/ coerentismo]; o jogo de linguagem é autónomo [não há uma disciplina catedrática que avalia que regras podem ser adoptadas]; as regras são internas a cada jogo de linguagem; cada jogo de linguagem só pode ser criticado a partir de dentro [das suas próprias regras internas]; dar significado é a função das regras do jogo de linguagem; alcança-se o conhecimento das regras, não mediante um intelectualismo estrito, mas a partir da prática.
Nota: o Tratactus só analisou um jogo de linguagem possível: o da ciência.
Consequência: já se pode dizer “Deus” (não existem limites da linguagem, apenas jogos distintos que revelam diferentes (e possíveis) formas de vida).
O jogo de linguagem do religioso não se deduz a partir de outro jogo de linguagem [é autónomo]. “Deus”, ao contrário de “átomo”, não pertence à linguagem da ciência mas tem sentido dentro do contexto da linguagem própria do sagrado. Por isso, apesar de exigirmos a verificação empírica de átomo, não podemos fazer a mesma exigência em relação a Deus [situa-se num jogo com regras de uso distintas daquelas que são utilizadas na linguagem científica].

A ciência não pode avaliar a existência de Deus, nem pode julgar as crenças religiosas. Só podemos criticar uma religião se a conhecermos desde dentro, a partir das suas regras internas, cujo conhecimento se obtém pela sua prática [vivência].

2) A crítica aos jogos de linguagem

Argumento contra o uso da filosofia dos jogos de linguagem: as religiões dizem conhecer algo que é válido fora do seu jogo de linguagem, consideram que o seu credo constitui uma Verdade universal e absoluta, não limitada a usos particulares realizados em situações concretas.
Resposta: (i) a abordagem de Wittgenstein quadra bem com o fideísmo luterano (não define Deus, mas remete-se para uma vivência pessoal); (ii) através dos jogos de linguagem não se descreve a religião, apenas se dá uma nova interpretação da mesma.

Wittgenstein II não é relativista? (i) é relativista no sentido de afirmar que algo é válido no Jogo de Linguagem A e falso noutro jogo de linguagem distinto; (ii) contudo, há um critério não relativo que estabelece a não verdade em questão.
Resposta: se alguém professa um credo professa-o absolutamente, ou seja, quem o profere aplica-o inteiramente à sua vida, ao seu agir [o homem religioso expressa-se absolutamente, não por entrar em contacto com o absoluto, mas por expressar o credo absolutamente; em Wittgenstein II, o valioso aparece no sentido de valer absolutamente].
Dois problemas desta interpretação: (i) como pode uma crença ser absoluta sem ser empírica?; (ii) como se relaciona um jogo de linguagem absoluto com outros jogos relativos?
(1) Wittgenstein refere-se a atitudes (formas de vida): sujeitos com crenças diferentes não se entendem, não se faz comunicação.
(2) A religião é um jogo de linguagem que se joga absolutamente, o que significa: (i) só alguns o jogam absolutamente; (ii) ou que todos os homens podem jogá-lo absolutamente.


3) As consequências da crítica

As crenças religiosas não se fundamentam como as hipóteses empíricas; o jogo de linguagem do religioso é claramente distinto dos restantes jogos de linguagem [proximidade de Karl Barth].
Questão do não-crente: o não-crente entende o significado da palavra Deus que o crente expressa; não entende as razoes que o levam a atribuir tal significado a essa palavra e, sobretudo, não compreender como o crente chega a ordenar toda a sua vida em função daquele significado [e de outros significados do mesmo jogo de linguagem]; o que o ateu não compreende é o impacto da religião na vida do crente [o significado que provém da vida do crente] – “o modo segundo o qual usas a palavra «Deus» não nos mostra a quem te referes mas o significado que dás”, diz Wittgenstein.

Particularidade do jogo de linguagem do religioso: tem regras mais complicadas, porque trata temas relacionados com toda a Vida, e não com um aspecto da Vida [visão do mundo como um todo, e não uma situação/ um facto do mundo]; na religião expressa-se o sentido total da existência » a religião é uma atitude que cristaliza um modo de ver o mundo [uma forma de vida global e englobante]: “a vida pode educar alguém a crer em Deus. E são também experiências as que conseguem tais coisas… sofrer de várias formas. Estas não nos mostram a Deus no sentido em que nos mostram um objecto, uma impressão sensorial”. A crença do crente é anterior à razão, não provem nem se destrói por deduções lógicas (exemplo de Dummet) – a vivência religiosa é meta-racional.
Defesa e interpretação nova do argumento anselmiano: “a essência de Deus se supõe que garanta a sua existência: o que isto quer dizer realmente é que o que aqui está em questão é a existência de algo” – a existência é indiscutível (esta é a primeira e a mais firme das crenças) – a essência de Deus mostra-se na vivência do crente [a existência do religioso não se discute, porque é condição de possibilidade da vivência pessoal do crente e do seu agir].
Conclusão: como a crença religiosa é distinta de todas as outras por estar construída sobre toda a vida, não pode ser refutada como as demais: para a destruir tem de se mudar toda a vida, toda a acção, do crente; trata-se de uma crença que não se capta no pensamento, mas na acção, na Vida.
Nota: por isso, alguns neowittgensteinianos reduziram a religião à prática.


4) Crenças e não crenças na Religião – Existem crenças religiosas?

A religião é meta-racional – a conversão não é produto do intelecto: o crente não professa uma religião porque alcançou o credo religioso de forma lógico-racional [exemplo do budista]; o convertido passou a ver o mundo a partir do jogo de linguagem da religião em causa (exemplo do budismo) » não são crenças habituais: trata-se de dar um valor simbólico a experiências pessoais » [em Observaciones a “La Rama Dorada” de Frazer (1967), a religião aparece como algo não cognitivo que expressa os anseios mais profundos do ser humano: o mágico-religioso constitui uma reacção expressiva que não brota da reflexão teórica] »
os significados só são válidos, e plenamente compreensíveis, para quem se situa dentro do mesmo jogo de linguagem.
Novidade de Wittgenstein: não há propriamente crenças religiosas; a crença religiosa é elaboração posterior de certas emoções; apenas há a substituição da emoção por uma palavra, que depois nos leva a uma crença [que na realidade constitui apenas uma emoção, e não propriamente uma crença].
Equívocos a evitar: (i) pensar que a religião é crença positiva; (ii) pensar que o mágico-religioso é técnica [como a alquimia do passado, por exemplo]; (iii) o homem religioso cair na teologia.

Fenómeno que ameaça a Religião – considerar que a expressão do sentimento religioso, com uma subjectividade semelhante à da dor, se pode analisar como um facto objectivo.
Conclusão: (i) o fenómeno religioso não tem de se submeter às hipóteses e análises científicas; (ii) o mágico-religioso vale como expressão universal do sentido da vida [o que há de mais importante]; (iii) Wittgenstein apenas mudou a sua maneira de fazer filosofia, não alterou significativamente a sua concepção básica de religião.
Noção wittgensteiniana de Religião – fenómeno humano expressivo e universal; valioso; não se justifica por uma racionalidade estrita [âmbito mata-racional] » [Wittgenstein I: a religião remete-se à esfera do Silêncio; Wiitgenstein II: refere-se a um jogo de linguagem distinto do jogo de linguagem da ciência]; não se justifica, pois é condição de possibilidade de vivência a vida como um todo [uma forma de vida (Lebensform)].

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Cf., SÁDABA, Javier - Lenguaje religioso y filosofía analítica: del sinsentido a una teoría de la sociedad. Barcelona: Fundación March, 1977.
Cf., SÁDABA, Javier - Filosofía, lógica, religión. Salamanca : Sígueme, 1978.
Cf., SÁDABA, Javier - Lo místico en Wittgenstein. In: Taula - Palma - N.º 29-30 (1998), p. 57-64.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Apontamentos sobre Poder e Política

As relações de poder sempre existiram em todas as sociedades, são um elemento constitutivo da própria trama social. A política só existe quando esse poder explícito é questionado, quando as insituições e as leis da sociedade são postas em causa e interrogadas quanto à sua justiça. A democracia é por isso o regime político por excelência, ou melhor, a democracia é a possibilidade da política. A democracia (e a actividade política) é o espaço do partilhável e do participável e não o domínio de especialistas. A política é a afirmação sem reticências , tal como dizia Aristóteles, da capacidade de todos para governar e ser governados, é a actividade daqueles que não têm nenhum direito especial para o fazer, seja esse direito adquirido por filiação, pelo saber, ou pela força.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Deve a Pornografia ser abolida?

Há vários argumentos a favor da proibição da pornografia. Vou considerar aqui os três que me parecem ser mais importantes. O primeiro argumento é que usar a sexualidade como emprego é moralmente errado. No entanto, numa sociedade em que se valoriza a liberdade este tipo de argumento não pode funcionar - trata-se de uma decisão autónoma e é prioridade das sociedades actuais deixar os indivíduos viverem como bem entendem, se isso não prejudicar terceiros

O segundo argumento é normalmente defendido por feministas: a pornografia é um modo de sujeição das mulheres e cria ilusões acerca daquilo que as mulheres realmente querem; consequentemente, é a causa de bastantes violações e comportamentos violentos da parte dos homens. Além disso, cria nas mulheres um comportamento que as diminui e que serve para beneficiar os homens.

Em resposta, pode afirmar-se que a correlação entre violações, comportamentos violentos e subjugação das mulheres por causa da pornografia é bastante fraca. Não existem dados que o demonstrem. Suspeito aliás que a pornografia pode ter tido algum papel na libertação sexual das mulheres no sentido em que liberou o comportamento sexual para ambos os sexos. Além disso, se a ficção tivesse um impacto mais forte do que a realidade, ter-se-ia de desconstruir toda a ficção que se produz.

Outro argumento feminista é que as mulheres que optam pela pornografia (ou pela prostituição) normalmente são mulheres que não têm qualquer outra opção. Admito que em alguns casos possa ser verdade, mas duvido que esta seja a regra. A opção, pelo menos nos casos de pornografia, é feita porque o salário é mais alto do que outros empregos. É pouco provável que as actrizes pornográficas não pudessem ser empregadas de mesa, por exemplo. Este argumento cai ainda no preconceito de que usar o sexo enquanto emprego é errado. No entanto, como vá afirmei acima, é simplesmente um preconceito. Além disso, parece-me que tirar a opção monetária às mulheres e aos homens que teriam de optar por carreiras menos remuneradas, caso não tivessem esta opção.

Existe manipulação das massas?

Existe uma tradição de origem marxista que afirma que o povo é manipulado no sentido em que são usados vários tipos de distracções para desviar as atenções daquilo que realmente é importante. Os exemplos mais usados são os desportos, as revistas cor-de-rosa, etc. Tudo isto, argumenta-se, são apenas objectos de manipulação das massas.

Ainda que seja verdade que muitas vezes as pessoas possam distrair-se daquilo que realmente é importante devido a esta manipulação, o argumento cai em pelo menos quatro erros. Em primeiro lugar, exagera o grau de distracção que estes objectos possam causar. Mesmo que eu me distraia da política (que parece ser o que é realmente importante) eu não fico completamente ausente, não estou noutro mundo por causa disso. Isto é, mantenho, de algum modo, as minhas preocupações e não esqueço que realmente existem problemas. O futebol não me faz esquecer nem na totalidade nem em grande parte os problemas com que tenho de lidar. É, aliás, pouco intuitivo afirmar que se eu tiver cancro, esqueço-me que o estado não me apoia porque me tento distrair com um jogo de futebol.

Um segundo erro é que este argumento considera que os indivíduos não têm nenhum grau de autonomia. Lembro-me de ouvir comentar que o Primeiro-Ministro José Sócrates anunciou algumas medidas fiscais pouco antes do jogo do Benfica começar. É claramente uma manobra de distracção, mas quem escolhe ver o Benfica em vez de ouvir o Primeiro-Ministro está a fazer uma opção que ninguém o obriga a fazer. É óbvio para qualquer pessoa que as palavras do Primeiro-Ministro são mais importantes, mas se ainda assim se escolhe ver o futebol, essa pessoa é inteiramente responsável por essa opção.

Em terceiro lugar, poder-se-ia argumentar que as pessoas não têm acesso à informação devida e, por essa razão, optam por ver o Benfica em vez de ouvir o Primeiro-Ministro. No entanto, isto é falso - a informação existe todos os dias de forma acessível através da televisão, internet, jornais e outros meios.

Em quarto lugar, o argumento parece assumir que qualquer distracção é um erro. Faz parte das nossas vidas usufruir daquilo que gostamos. O facto de eu gostar de ir ao cinema ou de seguir um desporto não implica que eu não esteja importado com o resto. Tenho o direito de optar e fazer aquilo que gosto.

Em conclusão, existe claramente uma tentativa de manipulação por parte das elites políticas; mas a tentativa é insuficiente para manipular as pessoas normais. Os políticos podem dar ópio para fumar, mas só fuma quem quer.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Menos armamento significa mais paz?

Está bastante em moda o argumento de que menos armas no mundo implica também mais paz. Este argumento diz respeito à defesa do estado (polícia, militares, etc.). A tese é que se houver menos armas no mundo, haverá também menos guerras.

Mas será que isto é verdade?

Eu penso que não; aliás, muitas vezes acontece exactamente o contrário - a existência de armas previne que haja mais conflictos. A razão pela qual assim é é que o facto de ambas as partes possuírem armas incentiva a que não se tome o primeiro passo. Em outras palavras, se A e B têm ambos uma pistola, é menos provável que um deles decida atacar o outro. Por outro lado, se apenas um tiver uma pistola, é mais provável que isso aconteça. Factos históricos comprovam-no: não houve guerra armada na Guerra Fria; as invasões de países por parte dos Norte-americanos são sempre a países com pouco armamento - a Coreia do Norte não foi invadida mas o Afeganistão foi.

Dito isto, a questão não se trata de diminuir o número de armas, mas de equilibrar o poder. Diminuir o armamento não funciona e pode, aliás, ter um efeito negativo: as partes têm um forte incentivo para não cumprir o acordo o que poderá levar a um desequilíbrio. Assim, termimo afirmando: "All we're saying is give guns a chance!"

sábado, 19 de junho de 2010

Será o poder a essência do político?


Será o poder a essência do político?

Todo o exercício de poder é coercitivo?

Se se exercer o poder, com a anuência do outro indivíduo, esse poder é coercitivo ou não?

       


  Desde a Antiguidade vários filósofos se debruçaram sobre questões como a política e todos os conceitos que lhe são inerentes. De momento cabe-nos aqui repensar o conceito de poder (como é exercido?).

         A noção de poder:
         Esta noção é susceptível de ser entendida como o direito de mandar, ordenar, deliberar e impor sobre algo e/ou alguém, veja-se por exemplo no campo político as ditaduras e regimes totalitários. Tal conceito pode ainda ser entendido como uma algo em potência que pode vir a actualizar-se a dado momento, consoante as circunstâncias.

         Será o poder a essência do político?
         Relativamente a esta questão, considero que o poder, embora seja importante e necessário para manter uma dada ordem num regime, não é de todo a essência do político. É a sua obtenção que se acaba por tornar a grande essência. O político cresce com as influências que consegue angariar dentro do meio que o sustenta; quanto maior for o número de influências maior será a capacidade deste coagir os outros. Isto pelo simples facto de que o político, enquanto figura que detém o poder, detém igualmente a autoridade. O poder é-lhe, inicialmente[1], reconhecido como válido (legítimo), decorrendo daqui a sua autoridade. A verdadeira política deveria ser aquela que tem como essência uma ideologia uma teoria, onde um grupo poderá ser coagido por uma corrente de ideias e não pelas influências de que possam ser alvo.
         Assim, o poder é importante para o político, mas não é de todo a sua essência. Há que ter em conta o papel relevante da autoridade (quando legítima); como é exercido tal poder e como é usada a autoridade. A autoridade pode ser pensada como uma forma de usar o poder. Deste modo, o político tem autoridade para mandar nos subordinados, e estes o dever de acatar as normas enunciadas pelo político.

Todo o exercício de poder é coercitivo?
Nem todo o poder é exercido de forma coerciva, num sistema verdadeiramente democrático existe a livre escolha de quem irá liderar, pelo menos será a escolha da maioria, embora se possa cair então num paradoxo, uma vez que há minorias que possam não aceitar, sendo que esses acabarão sempre por se sujeitar a uma certa coação pelas normas estabelecidas.
Em casos claros como o comunismo e o nacionalismo ou outras formas de totalitarismo torna-se bastante óbvia a utilização e abuso de poder perpetrado pelo líder do regime para se impor perante um povo. Neste tipo de regimes torna-se fulcral a manutenção do poder e da coação, isto se o indivíduo em questão se quiser manter no poder. Para tal é usada a propaganda, muitas vezes camuflada, como que passando mensagens subliminarmente.


Se se exercer o poder, com a anuência do outro indivíduo, esse poder é coercitivo ou não?

            A meu ver, tal poder não deixa de ser coercitivo, pois não sabemos de tudo aquilo que se encontra por detrás de uma determinada decisão de outro indivíduo, como por exemplo o seu consentimento perante aquele que exerce o poder.
            Atente-se que, quando o poder não se faz sentir, são utilizados meios de repressão, força e violência que ameaçam a vida de vários sujeitos. Estes meios levam a que o indivíduo comum tenha de tomar decisões das quais pode não se orgulhar, mas tendo sempre em vista o bem daqueles que lhe são próximos. Neste caso seria uma decisão forçada, um mal menor, para poder preservar a vida dos seus entes. A anuência seria apenas aparente. O indivíduo teria tomado uma decisão, forçado pela autoridade.
            Podíamos ainda aludir aqui a outro tipo de anuência, através da manipulação e propaganda, onde se vende uma imagem, um ideal. Ao fazer uso da propaganda, é como se o ser humano comum, ao ver aquilo que o rodeia, fosse impelido a tomar decisões quase que de forma inconsciente ou sem saber fundamentá-las convenientemente. A propaganda serve, neste contexto, para o culto à imagem (sendo esta aquilo que rende mais em sociedades menos alfabetizadas).


[1] Usei o termo inicialmente, na medida em que este mesmo poder, do qual o político foi investido, pode a todo o momento ser subvertido por ele próprio, decorrendo daqui o abuso de poder. Com o abuso de poder são visados apenas os interesses particulares do político, a sua vontade por vezes injustificável.

A Religião na Filosofia de Wittgenstein - Parte 1: Tractatus (1922)

Este tema será dividido, mas ainda não definido, em algumas partes.
Na primeira, será exposta a Filosofia da Religião, no Wittgenstein do Tractatus. Num segundo post, será exposta a Filosofia da Religião, no Wittgenstein das Investigações Filosóficas. Seguir-se à, mas ainda não definido, alguns Filósofos da Religião influenciados por Wittgenstein, com mais algumas notas sobre o impacto de Wittgenstein para a Filosofia da Religião.

Questão fundamental: Qual é a relação entre pensamento e realidade? Para Wittgenstein, o pensamento só tem sentido se chegar ao mundo. Isso só é possível se as proposições e os factos partilharem da mesma forma lógica.

Teoria Pictórica da Representação – procura uma solução definitiva para o problema da relação entre linguagem e
realidade; as proposições têm sentido se se referirem a factos susceptíveis de serem representados [descritos]; âmbito do que se pode dizer [as proposições com sentido são aquelas que pertencem às ciências exactas e naturais].

Âmbito do sem-sentido – a proposição sem sentido (unsinning) constitui uma afirmação que não se refere a um facto do mundo: (i) tudo aquilo cuja veracidade não pode ser determinada; e (ii) tudo o que superabundantemente seria verdadeiro, sem se explicar nem demonstrar [esfera do religioso].


Conclusão: não se pode falar de valores, porque os valores ou não têm valor de verdade ou são verdadeiros sem justificação » pertencem à esfera do Silêncio [âmbito daquilo que não se pode dizer, apenas se mostra].


1) O Valioso – não se diz, mostra-se: “o valor não é um facto”, não se descreve. A ética, a estética e a religião situam-se na esfera do valioso. Para Wittgenstein, o valor não é compreendido no sentido ético, nem estético, clássico; o que tem valor é o não contingente, o que não pode ser pensado de maneira diferente do que é; Wittgenstein refere-se a valores absolutos, não sujeitos a transformação [não se pode dizer porque nunca poderemos pensar que tal valor fosse de outra maneira].
Nota: diferença entre ética e estética: a ética é menos subjectiva.


2) O Místico – O valioso é o místico: (i) não é como as coisas são; (ii) mas que as coisas são [não se justifica, nem se explica, aquilo que é]; (iii) sentir o mundo limitado como um todo; o místico não se diz, mostra-se. Dentro do místico, o valioso surge como três reacções descritas: (i) estética; (ii) ética; (iii) religiosa.
Consequência: “existe o inexpressável” [Wittgenstein difere da filosofia dos neo-positivas].

3) A Religião – pertence à esfera do silêncio; não é um conhecimento; trata-se de um sentimento, de uma visão do mundo como totalidade (Weltanschaung); uma reacção (um comportamento que se mostra e não se diz); as reacções ligam-se aos limites da linguagem [não se dizem, nem se expressam em proposições]; admiramo-nos, não pelos factos, mas pelo que está acima deles, pelo que possibilita tais factos [o Absoluto]. Como se chega ao Absoluto? – (i) não por dedução (por exemplo, existe o relativo e este necessita do absoluto para existir); (ii) para Wittgenstein, nos factos mostra-se que algo é o fundo das coisas, algo que não se descreve, não se justifica, não se diz: “a proposição mostra o seu sentido”, na linguagem sobre o mundo mostra-se o que a transcende (T, 4022). Importância da vontade – só podemos chegar ao Absoluto pela vontade, não pelo pensamento (influência de Schopenhauer: essência do mundo está para além da representação).
. Consequências: (i) não há crenças religiosas, porque não há conteúdo empírico nas proposições dos vários credos; (ii) as críticas de Russell, Black e Ramsey a Wittgenstein situam-se no nível lógico-linguístico; no entanto, a postura de Wittgenstein procura medir a vontade e o mundo como uma totalidade [nesse encontro aparece o valioso].


4) «Deus» – a religião situa-se dentro do que não se pode dizer; distingue-se da estética e da ética pelo seu valor ser inteiramente pessoal; não se transmite/ ou expressa pela linguagem; apenas se podem utilizar metáforas [dado que se está a ultrapassar os limites próprios da linguagem].
O termo “Deus” aparece, sobretudo, nos Diários, com sentidos distintos: (i) refere-se à vida espiritual em geral; (ii) ao nosso eu mais profundo; (iii) ao mundo como totalidade. Quando Wittgenstein se quer expressar religiosamente usa a palavra “Deus”; enquanto o termo “religião” utiliza para se referir a uma religião positiva concreta.

Deus = Sentido da Vida = Sentido do Mundo

sentido da vida não é o sentido das proposições das ciências naturais, confirmadas ou refutadas pelos factos. Trata-se de um Sentido total fora da linguagem, pertencente ao âmbito da Vontade. Deus refere-se à existência enquanto tal » está ligado à vida/ praxis.

5) Religião e Teologia – consequências da Filosofia de Wittgenstein I:

(i) a Lógica é uma entidade transcendental – apenas se mostra (não se diz) na medida em que é condição de possibilidade da representação (descrição dos factos), da linguagem e dos factos do mundo;
(ii) a Religião é entidade transcendental – Mostra-se através da vontade humana, mostra-se vivendo, sentindo, tendo uma perspectiva da religião desde dentro (ao contrário da Lógica). É condição de possibilidade do experienciar a vida como um todo.
(iii) a Religião não é uma crença – a crença comporta conteúdo proposicional (que pode ser verdadeiro ou falso dependentemente dos factos em causa).
(iv) Religião é incompatível com a Teologia.
(v) o místico não se identifica com nada de concreto – corresponde à vivência pessoal.
Confronto entre o Místico e o Teólogo


Místico Teólogo
Heterodoxo Ortodoxo
Relaciona-se com Deus da Religião (o importante é o inefável) Fala do Deus dos Filósofos (importante é compreender)
Teologia negativa Teologia positiva

Nota: Wittgenstein I não se interessa pela Filosofia da Religião, apenas pela Teologia negativa (mais próximo dos místicos). Influência da Teologia Judia de Rosenzweig no Tratatus: o sujeito situa-se fora do mundo e encontra-se com Deus directa e individualmente; trata-se de um Deus sempre ausente [vela-se o inefável], que não se pode nomear, um Deus que sustenta o mundo mas não se revela concretamente nele.

Conclusões: (i) a primeira filosofia de Wittgenstein, não suporta a Filosofia da Religião; (ii) pode ser aproveitada pelo religioso e pelo sagrado no sentido da valorização mística; (iii) teologicamente só ajuda o sagrado a partir de uma Teologia negativa que, em lugar de definir Deus e seus atributos, remete-se ao silêncio ou à negação. Então, a ciência não pode refutar o religioso, pois nesse caso criaria proposições sem sentido; Deus não pode ser nomeado, mas pode ser vivido, experienciado, pessoalmente por cada ser humano; não se justifica a Religião pela racionalização e sistematização teológica dos dogmas, mas por uma praxis concreta.
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Cf., SÁDABA, Javier - Lenguaje religioso y filosofía analítica: del sinsentido a una teoría de la sociedad. Barcelona: Fundación March, 1977.
Cf., SÁDABA, Javier - Filosofía, lógica, religión. Salamanca : Sígueme, 1978.
Cf., SÁDABA, Javier - Lo místico en Wittgenstein. In: Taula - Palma - N.º 29-30 (1998), p. 57-64.

terça-feira, 15 de junho de 2010

O que é a arte?

Uma questão que sempre me interessou é "Qual é o critério ou critérios que distinguem uma boa obra de arte?" ou, simplesmente, "O que é a arte?". Para muita desilusão minha, os critérios possívies são, a meu ver, fracos e/ou contingentes. Há dois critérios principais que normalmente são evocados.

Um dos critérios é o grau de sofisticação ou de dificuldade que a obra exige. Quanto mais difícil for a técnica, melhor a obra. Há pelo menos duas razões que sugerem que este critério é falso. A primeira razão é que muitas obras normalmente consideradas como extraordinárias não requerem qualquer tipo de capacidade técnica. O exemplo mais claro é A fonte, de Duchamp. A Fonte é um urinol e nada mais. Ora, se A Fonte é considerada uma obra, este critério não pode ser verdadeiro. Ou se abandona a ideia de que A Fonte é uma obra ou a ideia de que este critério é verdadeiro. Uma vez que é praticamente unânime, entre os especialista, que se trata duma obra, deve optar-se pela segunda opção. A segunda razão pela qual o critério é falso é que não é intuitivo afirmar que a uma obra concebida no século XIV, quando as técnicas artísticas não eram tão avançadas como hoje, é uma obra menor do que uma obra do século XX.

Outro critério possível é a capacidade que a obra tem de transmitir uma mensagem ou ideia. No entanto, este critério está em grande parte sujeito à pessoa, ao contexto histórico, cultura, entre outros factores. Portanto, não é possível caterogizar uma obra com este critério por não ser possível universalizar as propriedades. Pode argumentar-se que o que interessa é a qualidade da mensagem transmitida. Mas isto depende também da pessoa que contempla a obra - não é possível universalizar as propriedades.